sábado, 15 de novembro de 2008

O poço

Ao fundo do pátio, encostada ao muro, lá está a casota do motor que serve para tirar água do poço. A meio do pátio, uma tampa quadrada, pesada como chumbo e cheia de mistério. Tenho de saber.
- O que é isto, avô?
- É uma tampa.
- E o que tem ali?
- Um poço.
Olho para o avô e ele percebe que eu não percebo.
- É um buraco muito fundo onde tem água.
Já se percebe um pouco melhor, mas não chega.
- Quero ver, avô.
O avô hesita,mas acaba por me fazer a vontade.
- Está bem.
Vai à garagem remexer numa caixa e volta com uma coisa esquisita na mão, que parece uma tesoura, mas mais grossa.
- O que é isso?
- É um alicate.
E antecipa a resposta à pergunta seguinte, que eu não cheguei a fazer, mas ele adivinhou.
- É para levantar a tampa do poço.
O avô curvou-se, agarrou a tampa com aquela coisa esquisita e começou a puxar. Devia ser mesmo pesada, porque ele até ficou vermelho e no fim soprou com força. Depois agarrou-me muito bem com um braço à volta da barriga e disse:
- Vá, espreita.
Tão escuro! Não se via nada, só mesmo o escuro.
- Espera um bocadinho para os olhos se habituarem ao escuro.
Só passado um bocado é que comecei a ver, lá muito no fundo, qualquer coisa que brilhava um pouco. O avô explicou:
- É a água.
- Ui, tão fundo!
- Pois é. E é perigoso. Vamos pôr a tampa.
E o avô fechou outra vez o escuro naquele buraco tão grande que até mete medo.
A casa do avô Jorge e da avó São não é muito antiga, mas é do tempo em que ainda se faziam poços para se ter água em casa, porque (dizem eles) não havia outra, e sem a aguinha não se pode passar. Se não como é que havia de ser quando eu, por exemplo, tenho sede?
- Avó, quero água.
Ou quando quero lavar os dentes antes de ir para a cama?
- Se eu não lavar os dentes aparece a cárie, não é, avó?
Ou quando é preciso pôr água quentinha na banheira para eu tomar banho?
- Olha, avó, sou um peixinho!
Ou quando a avó vai ao tanque, debaixo do alpendre, lavar roupa, e eu quero ajudar?
- Também quero lavar roupa, avó...
Ou quando o avô quer regar as plantas dos vasos que estão nos pátios e se põe a encher de água um regador muito grande, quase do meu tamanho?
- Também quero regar, avô...
Felizmente há um regador pequenino ao pé do tanque. O avô põe-lhe um bocadinho de água e então eu já posso ajudar a regar as plantas.
Quando lhes ponho água, as plantas olham para mim, muito satisfeitas, dando um estalinho com a língua.
- Ah, que rica água! Com este calor estávamos mesmo cheiinhas de sede.
E espreguiçam-se ao sol, muito consoladas.
- Obrigado, Carolina.

sábado, 11 de outubro de 2008

O sol na cabeça aquece os tijolos

Tudo pronto para irmos passar um bocado da manhã à Costa Nova. A Carolina já está vestida, acaba de calçar as sapatilhas. Está um céu de trovoada, com algum sol mesmo assim. A avó lembra ainda, antes de sairmos, que é preciso levar o chapéu por causa do sol. E logo a pequenita, toda lampeira, afagada pela boa disposição que lhe traz o ir até ao parque infantil:
- Pois, temos de levar o chapéu para não apanhar sol na cabeça e não aquecer os tijolos.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Se tirares o chapéu és careca

Quis andar no baloiço. Fui empurrá-la (desta vez fui eu o requisitado). Não dispensou a companhia da sua boneca inseparável, a Matilde. Estava com uma bandelete a segurar-lhe o cabelo. A certa altura, meti-me com ela:
- Deixa-me pôr um bocadinho a tua bandelete.
Resposta pronta:
- Tu não precisas, és careca.
- Sou careca? Olha tanto cabelo.
E mexi no cabelo que se via abaixo do chapéu, na nuca, nas patilhas.
E logo ela, outra vez:
- Mas se tirares o chapéu és careca.

domingo, 8 de junho de 2008

A bandelete

Veio ter comigo. Camisola sem mangas, calções de praia, toda fresca na sua cara tão fresca. Parou diante de mim num sorriso rasgado e ficou assim, à espera que eu visse. Mas o avô não via nada, só o sol do sorriso. Por isso perguntou:
- O que é?
E foi ela que teve de dizer, apontando a bandelete que trazia no cabelo:
- A bandelete.
E girou, num trejeito muito feminino, antes de se afastar na sua deliciosa vaidade inocente.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Tu já és velho

Esta noite a Carolina dormiu cá. De manhã, já depois de todos arranjados, para tentar que ela se despachasse
(arranja sempre pretextos para demorar mais um bocadinho
- Quero água
- Quero bolachas
- Quero andar no baloiço)
disse-lhe:
- Vá, vamos embora. A avó tem de ir trabalhar, tu também tens de ir trabalhar(quando lhe dizemos
- A tua escolinha
ela logo
- Não é a minha escolinha, é o meu trabalho)
e o avô também tem de ir trabalhar.
- Tu já és velho, já não trabalhas. Ficas em casa.
Restou-me dar uma boa gargalhada.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

O meu trabalho

Esta noite a Carolina dormiu connosco. Pelas nove e tal, lá fomos levá-la à escolinha. Já perto, quis confirmar:
- Depois vais para o trabalho, avó?
- Pois vou.
Meti-me na conversa:
- A avó vai para o trabalho e tu vais para a escolinha.
E logo a Carolina:
- Isto não é a escolinha, é o meu trabalho. Vamos as duas para o trabalho.

sábado, 12 de abril de 2008

Um dia vou ser grande

- Quero água.
Dei-lhe um pouco num copo. Estava a beber, quando, a meio, comentou:
- É preciso beber água para o chichi sair claro.
A avó dissera-lhe isso pouco antes. E eu:
- Pois é, é preciso beber bastante água. Ou sumo.
- Ou vinho - acrescentou ela.
- Vinho não. O vinho é só para as pessoas grandes e poucochinho.
A réplica veio logo:
- Um dia vou ser grande e vou beber vinho.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Deixa lá, vais comigo

A caminho da escolinha, avistámos de longe a Feira de Março. E logo a Carolina:
- Olha, avó, a Feira de Março!
- Eu, este ano, ainda não fui à Feira de Março - comentou a avó São.
Talvez a pequenina tenha pressentido nisto alguma mágoa.
- Deixa lá, vais comigo - consolou ela.

Que linda que ela está!

Esta noite, a Carolina dormiu em nossa casa. A Catarina voltou para a Madeira e o Rui foi levá-la ao aeroporto. Hoje de manhã, antes de sairmos de casa, a avó São deu à pequenina uma pulseira e uma bandelete, que ela fez questão de começar a usar de imediato.
- Que linda que ela está! - gabou o avô. - As mulheres são muito vaidosas, não são?
Resposta da pequenina:
- Sim.

sábado, 5 de abril de 2008

Fotograia com o avô

O dia dos teus anos já lá vai. Dos teus três anos. Não faço a menor ideia de mim aos três anos. Nem sequer a memória me guarda qualquer registo, qualquer vestígio. Portanto acho que nunca tive três anos. Tu sim, tens três anos e hei-de recordar-te com três anos enquanto não avariar de todo. E com quatro, e com cinco.
Agora estou aqui no escritório a pensar nestas coisas, e vejo-te numa fotografia que tenho diante de mim, tu pequenina (dez meses, um ano?), ao meu colo, encostada ao meu peito, ao meu peito não, encostada ao meu coração, a enchê-lo de uma ternura que o meu sorriso mal deixa pressentir.
Tudo em ti tão novo, a vida, o mundo (a vida que estás a começar, o mundo que hás-de descobrir), tudo tão cheio de inocência e de mistério e de esperança, tudo tão cheio de ti, meu amor pequenino.

domingo, 23 de março de 2008

Gostas do avô, pois gostas?

Por volta dos teus dois anos comecei a ser para ti um avô com nome.
- Quem sou eu?
- Avô Jogi.
Não apenas um rosto conhecido, um rosto com nome
- Avô Jogi
e o avô Jogi babado de ternura.
- E quem é esta?
e tu sem hesitar
- Avó São
estendendo os braços para a avó São num pedido irrecusável de colo, de ternura, sempre a avó São, a avó São para tudo
- Diz, minha linda.
Um pouco mais tarde, a árdua conquista das palavras e a descoberta do mundo das emoções foi-te permitindo outras graças.
- A avó?
- Foi lá fora. Não estás aqui bem com o avô?
e tu a dares uma resposta sem responderes
- A avó?
eu a fingir-me agastado, a provocar-te
- Gostas do avô, pois gostas?
e tu a devolveres-me a provocação
- Não
a minha cara numa indignação sorridente
- O quê?
enquanto os meus dedos, verrumando-te a barriguita, te fazem contorcer com cócegas, soltar grandes risadas cristalinas, repetindo a provocação
- Não
à espera de mais cócegas do avô Jogi.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Os sinos

Não sei porquê, os sinos parecem despertar em ti um fascínio especial, ficas a ouvi-los
- O sino
com o dedito em riste, como que suspensa do som carregado de mistério e de encanto.
Por esse fascínio (que também tenho), aqui te deixo estas riminhas, modestas como o sino de uma pobre capela no ermo de um monte.
O sino toca
dlim-dlão
e ouve-se ao longe
ladrar um cão.
Ouve-se ao longe
ladrar um cão
e o sino toca
dlim-dlão.

terça-feira, 11 de março de 2008

O baloiço

Um dia, finalmente, passou a haver um baloiço em casa da avó São e do avô Jorge. Um baloiço vermelho, uma espécie de cadeirinha de plástico, com quatro cordas, que o avô suspendeu de uma viga do alpendre. E já não era sem tempo! A partir daí foi um regalo. E como pedias sempre para te empurrar com mais força, pensei em criar uma cadência para entoares enquanto voas. Cadência que decoraste bem depressa e que tu própria passaste a dizer (quando te apetece, claro) com a música do "Lagarto Pintado".

Baloiço vermelho
da Carolina
leva bem alto
esta menina.

Leva bem alto
esta menina
baloiço vermelho
da Carolina.

domingo, 9 de março de 2008

O meu amor pequenino


Correndo pelo jardim
ia e vinha,vinha e ia,
e no seu leve correr
tudo com ela sorria.


Dos seus cabelos ao vento,
ondas de um mar dourado,
nascia tanta alegria
que por um breve momento
o mundo ficou parado.

sábado, 8 de março de 2008

Arca do tesouro

Para a Carolina, o meu amor pequenino
O tesouro, evidentemente, és tu. Quanto à arca, é apenas o sítio onde tenciono guardar algumas pequenas coisas que for escrevendo para ti ou sobre ti. Arca do tesouro, portanto, não pelo valor das coisas que lá ficarão guardadas, mas por ser tua.